terça-feira, 24 de junho de 2014

A Atenção Plena e as Onze Picadas de Melga

Já aqui falei algumas vezes da forma como o mindfulnes - ou atenção plena - provoca mudanças na nossa forma de nos relacionarmos com o mundo e com a nossa própria experiência. 
Acontece que, por vezes, essas mudanças acontecem de forma tão gradual e tão subtil que acabamos por nem nos dar conta de que aconteceram e só nos damos conta disto quando somos confrontados com algum acontecimento extremo e percebemos que estamos a reagir de um modo diferente daquele que nos era habitual. 
Há uns dias tive um exemplo deste tipo de mudanças e da forma como a meditação modifica o nosso relacionamento com a nossa própria experiência e, neste caso, não precisei de nenhum acontecimento muito extremo para o compreender. Não costumo ser muito incomodada pelas melgas ou mosquitos mas, recentemente - vá-se lá saber porquê - houve uma melga que, ou estava muito desesperada, ou desenvolveu alguma paixão assolapada por mim e resolveu fazer um banquete com as minhas pernas. Então, de repente, quando me dei conta já tinha onze picadas de melga, todas bem vermelhas e grandes e quase todas na zona da barriga da perna esquerda. Escusado será dizer que a comichão era mais que muita, até porque a única coisa que tinha para aplicar era uma pomada de calêndula que já estava fora de prazo e - provavelmente por causa disso - não me aliviou grande coisa. 
A única vez em que me lembrava de ter ficado neste estado foi quando estive na Índia, porque quando lá estive apanhei a altura das monções e - por mais repelente que esfregasse no corpo- a zona do pés e das pernas acabava sempre por ser lavada com a água e, por isso, estava constantemente a ser mordida nessas zonas. O facto de estar lá a fazer um curso de Yoga também não ajudou muito visto que passava uma boa parte do dia de olhos fechados e a tentar concentrar-me, logo, provavelmente era uma presa mais fácil para os ataques das melgas do que se estivesse atenta e a tentar enxotá-las.
Mas, o que me marcou neste episódio recente foi a grande diferença com que lidei com as picadas desta vez: nessa altura, há uns oito anos, coçava-me de forma incontrolável, até ao ponto de fazer ferida e, na verdade, quanto mais coçava mais incomodada ficava. Cheguei até a esfregar um creme preto nas pernas que me garantiram que era tiro e queda mas que, além de me deixar as pernas todas pretas e engorduradas de tal forma que nem com a água as conseguia lavar,  não teve grande efeito: a comichão continuava e as picadelas constantes também. Mais uma vez, o facto de estar a fazer o tal curso de yoga não ajudou muito, porque cada vez que tentava concentrar-me achava que tinha de eliminar a sensação de comichão da minha mente e ficava numa luta inglória em que as picadas até pareciam aumentar em número e em tamanho.

Mas, desta vez, simplesmente dei-me conta de que podia observar essas picadas com todo o incómodo que causavam, e o impulso de coçar praticamente nem chegou a surgir. Foi como se este impulso ainda estivesse presente, em alguma parte da minha cabeça, mas já não era suficientemente forte para o levar a cabo. E dei-me conta também de que isto não tinha nada a ver com força de vontade porque nestes casos, como em tantos outros, ela não é suficiente para inibir esse impulso. Dessa outra vez, por mais que pensasse que não queria coçar-me - porque ficar com as pernas todas em ferida também não era propriamente a melhor solução para o problema -  por mais que tentasse conter e lutar com esse impulso, ele acabava sempre por levar a melhor.

Desta vez  foi muito diferente porque simplesmente não houve luta, não houve resistência, foi como se houvesse uma parte de mim que tinha aprendido que esse coçar era apenas fruto da ignorância e que, mesmo parecendo capaz de provocar um alívio temporário, só acabaria por provocar ainda mais sofrimento. Mas esta aprendizagem não era nada de racional, não era algo que surgisse porque tinha pensado ou reflectido sobre o assunto. Das outras vezes em que me coçava também sabia perfeitamente, tão bem como hoje, que coçar-me até fazer feridas só ia piorar as coisas e não resolvia nada, até porque a cada dia apareciam mais mosquitos e mais picadas. Mas, desta vez era uma espécie de saber mais interno, mais profundo. Juntamente com essa nova consciência tomei também contacto com uma parte de mim que sentia mesmo relutância em embarcar nesse tipo de comportamento. Como se o impulso de me começar fosse logo derrotado à partida por essa parte que sabia que ele não levaria a nada a não ser a um novo sofrimento.

Desta vez houve alturas em que me dei conta de que ainda lutava com a comichão, quando o meu diálogo interno me dizia que já não podia aguentar mais e que ela tinha de desaparecer e, nessas alturas, quase sentia vontade de coçar e as sensações ficavam ainda mais fortes e difíceis de aguentar. Mas, a maior parte do tempo, percebi que podia simplesmente observar. E ela estava sempre presente, quando falava com as pessoas, quando escrevia no computador, quando andava na rua, etc, não desaparecia embora houvesse alturas em que, naturalmente, a minha atenção ficava tão absorvida por outras coisas que me esquecia que estava presente. Mas, sempre que não estava totalmente envolvida no que fazia, lá voltava a comichão, a diferença é que, quando eu não lutava com ela, voltava apenas em pano de fundo, não tomava totalmente conta de mim ou da minha atenção ou consciência. Voltava de uma forma que me permitia aceitá-la, lidar com ela sem entrar em lutas ou sem me deixar levar demasiado pelos meus comentários e julgamentos acerca dela.

Então com estas simples picadas de melga aprendi que o mindfulness ou a atenção plena mudou realmente a minha forma de me relacionar com a experiência e com aquilo que acontece. E, aprendi também que, tal como acontece com tantas outras coisas, as picadas de melga passam muito mais depressa quando não as coçamos ao ponto de fazer ferida.

Escolhi partilhar este episódio porque me pareceu um bom exemplo para a forma o mindfulness opera mudanças na nossa consciência. Neste caso foram apenas picadas de melga mas podiam ter sido muitas outras coisas. As picadas de melga aqui representam todos os incómodos, dores e desafios com que nos confrontamos nas nossas vidas. E, quando estamos no meio deles, muitas vezes, sabemos exactamente qual seria a opção correcta a tomar ou aquilo que não devemos fazer. Tal como eu sabia que não me deveria coçar. Mas, os nossos impulsos, os nossos condicionamentos, são mais fortes e acabam por levar a  melhor porque não conseguimos vencê-los com pensamentos racionais e com intelectualizações sobre aquilo que se está a passar. Com a prática de mindfulness podemos encontrar dentro de nós um outro espaço para observar a experiência e, a partir deste espaço seguro, encontramos muito mais possibilidades para lidarmos com tudo o que nos acontece. E, quando não temos outro remédio se não deixar passar, é também a partir deste espaço seguro que podemos observar e acolher cada instante da nossa experiência.

E a partir deste espaço seguro podemos perceber que, se partirmos de uma atitude de aceitação para com a nossa experiência em vez de entrarmos em luta com ela, podemos encontrar formas de responder à situação em vez de nos limitarmos a reagir. Neste caso quando me coçava estava apenas a reagir à comichão e, à custa de querer que ela desaparecesse rapidamente, só acabava por provocar mais sofrimento. Mas, quando somos capazes de observar e de aceitar as nossas experiências, acolhendo-as como parte integrante da nossa vida naquele momento, podemos deixar de lado as reacções e ganhamos espaço para sermos capazes de responder de forma liberta de condicionamentos e de impulsos que só trazem mais sofrimento.
Neste caso não havia assim tantas formas de responder a esta situação. Poderia ter comprado qualquer coisa na farmácia para aplicar mas escolhi não o fazer porque não gosto de recorrer a medicamentos que não sejam mesmo necessários. Também poderia ter comprado mais pomada de calêndula mas não havia nenhum sítio perto de mim que a vendesse e, por isso, também escolhi não o fazer. O mindfulness e o facto de não estarmos tão presos aos impulsos também nos permite ser mais criativos e encontrar soluções que não seriam exactamente as esperadas. Então, neste caso, descobri que usando um pouco de óleo de coco a comichão ficava um bocado mais discreta. Mas o importante é que, o facto de ser capaz de observar esta parte da minha experiência me permitiu ter consciência destas possibilidades todas e saber que tinha toda a liberdade de escolher o que me parecesse mais adequado para lidar com ela. E, desta vez, o que me pareceu mais adequado, para além de ir usando o óleo de coco, foi mesmo pegar neste incómodo e encará-lo como um bom treino de mindfulness e uma boa experiência de aprendizagem sobre os seus efeitos.